segunda-feira, 24 de agosto de 2015

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não há nada a arrancar, eis o grande medo. o pesadelo em que teu rosto em gesso flutua sobre o caule que o suspende acima de um vaso. é um pesadelo apenas porque diz a tua infância, remota, numa pequena região que nunca pude tocar. não há vidro entre nós, não posso te alimentar nem ser exposto ao olhar. não é que você não tenha olhos, apenas me concentro nas sobrancelhas, nas pálpebras, na curva do nariz, no lábio inferior delicadamente projetado para a frente. outro dia era um queixo, dentes muito brancos e mãos cruzadas sobre o colo. embaixo da cama havia um pequeno papel de bala que floresce e se ramifica: cartografia das linhas azuis no branco de teus pulsos, dos pequenos pontos negros em tuas pernas, do decalque de dedos sob as meias cinzas anteontem cruzadas em minha nuca (gosto adocicado da chuva lá fora). agora não vejo teus pés, a mão que sinto me percorrer as costas talvez seja a minha, talvez o chamado de uma irmã longínqua, um trabalho que alguém executa sem pensar, o funcionamento de um autômato. nessa sala não existe deus, não existe o correr do tempo e o gesso do rosto não pode ser distinguido do pequeno pulso em teu pescoço segundos antes do que agora parece ter sido um beijo. isso não é uma lembrança, apenas precisa estar em algum lugar. não houve perda, não houve ganho, não houve nada. não há buraco a ser preenchido, caverna a ser tateada, não tenho uma confissão. não é possível saber ao certo quem é você, ou o que é essa imagem de um casaco verde com capuz, das frutas azuis pinçadas por teus dedos ou onde estavam os olhos quando erguia o rosto satisfeita pelo sabor do doce (servido por um senhor rude em algum café que poderia ser perto de uma praça mas nunca acolheria o nosso encontro). isso não foi a exatamente uma semana atrás, ou anteontem. não é uma lembrança, não é uma culpa, não é nada. isso só é um pesadelo porque precisa estar em algum lugar. uma pequena produção sem método ou destino. uma pequena caixa onde não projeto nada, não me lembro, talvez não exista. não sei se é possível existir em pesadelo. não é possível lembrar se nada aconteceu, se o silêncio que emana do rosto, do caule, do pequeno vaso que os sustenta é o mesmo e é ao mesmo tempo que o silêncio de voltar na chuva, da tua voz um pouco rouca às cinco da manhã de outra cidade, do pequeno estalo do teu ombro esquecido segundos antes de entrar no ônibus. talvez isso tudo seja um encontro, um esquema, o mapa de um jardim sem portas que germina agora mesmo sob a terra. talvez você seja a projeção de um grupo animado que dança e olha para o sol. talvez eu tenha consentido que tirasse os tênis e violasse o quarto em que não posso mais dormir. talvez isso não seja um sonho, mas o doloroso suspense de um parto decidido a não pactuar com a vida. um pesadelo é apenas uma sala de espera, onde a qualquer momento pode ser que a contração rápida (quase imperceptível) de um rosto em gesso finalmente anuncie que não é bem que nessa sala não se espere nada, mas que esse nada já aconteceu e acontece o tempo todo sob a malha impotente da lembrança. nessa sala não é amanhã, ou ontem, nem mesmo agora. ela, assim como você, é apenas sombra, semblante sem forma, impossível de moldar e repleto de arestas, pequenos fotogramas de um tempo que paira ao lado da vida. chamo de pesadelo apenas porque preciso estar em algum lugar. não há mais nada a arrancar, não sinto mais o medo, talvez esteja em algum lugar.