terça-feira, 28 de outubro de 2014

любродская

QUE NÃO HOUVE NADA MAIS – senão o fato de que nada se passou, nada além do breve encontro e que nos dissemos tudo; a troca do interminavelmente breve em brevemente interminável; que nada teve lugar a não ser essa passagem, esse falso todo, destruído pelo saber de que não é nada – é isso mesmo que cada um evoca encontrando o outro: você se lembra? Da chuva, da mostarda, do seu vestido naquele dia; e cada um sorri. E é esse nada que nos faz falta. Não há nada que não nos faça falta. (Michel Deguy)


não temo o teu silêncio - há no mundo distâncias muito maiores que esta que nos separa - nossos amigos, por exemplo - temos algum ainda em comum? - começam já a casar e a morrer? - encontramo-nos quem sabe no funeral - daremos um abraço educado - lembrança súbita do toque do teu corpo - apresentaremos amigos, companheiros, nosso novo rosto morno de convenção - não haverá mais, naturalmente, o subterrâneo íntimo que nos unia em festas

haverá alguma fresta ainda? - como o dia em que você espalhou mostarda pelo chão do restaurante dos sanduíches de queijo - será isso alguma coisa? - existem ainda esses caminhos? - o quilo onde almoçamos por dois anos será sempre o jardim de inverno - uma ave será sempre o teu amor - fóssil encontrável em qualquer ponto de qualquer cidade que poderíamos ter percorrido - poderíamos ter-nos encontrado, brigado e dividido refeições - o cotidiano é cheio de arestas

tua ausência é até serena - os dias se empilham e crio relações imediatas, religiosas, num mundo que habitei sempre sozinho - teu rosto através do vidro - o tempo arrastado dos domingos idênticos que passamos abraçados - o descanso irritante das nossas pernas grudadas de calor - uma lembrança fotográfica: você na rua com o cachorro, acenando seis andares abaixo pro meu rosto molhado na janela do chuveiro - um aceno da eternidade rompida pelo trabalho de segunda-feira - enfim adultos

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

codex

era o som da tua hora que voltava
entre farelos de pão preto
outrora quente
soterrados nas almofadas
do sofá da sala

era o tempo em que você deitava
e mordiscava, mansa
os meus olhos
quentes do teu hálito
e a manhã voava

a revoada de pássaros verdes
que corríamos pra ver
o vidro embaçava
e lá inventávamos um código
uma língua nossa

agora
absolutamente indecifrável

terça-feira, 29 de julho de 2014

de um extremo a outro
de minha noite
as palmas de tuas mãos
úmidas
as tuas mãos
úmidas de chuva
de setembro e de fuga
o macio delas
canto doce de celas
entre uma palma e outra
limbo azedo e mole
paira a noite
minha vida chove

poldy

ajoelhar-se diante de estátuas
é o único gesto possível
de quase realização
do amor

dissolver os nós
no tudo-eu
que se recruza
rizoma do instante
reinvenção contínua
do sentido primevo que nos escapa

insinua-se deus onde a linguagem falha

nesse ponto é indiscutível
essa capacidade
de migalha

reclamar o todo
evocar os astros
na ingênua pretensão
de desvelar no caos
na aparente dissolução
um mero presságio
de mais estável constelação

10's

é tão triste pensar que todas as minhas lembranças vão se apagar completamente quando eu morrer.
repetíamos juntos as falas dos padres
padres amorosos e bons amantes
dos frêmitos bucólicos
de belas sórors
que cavavam túneis
dos seminários aos conventos
(dizem que ajudados pelo Diabo)
pelo puro amor de fazer orgias
juntos ajoelhamo-nos
ante a Virgem
de pele branca e lábios róseos
duplos como as folhas venezianas
que escancaramos para penetrar o Sol
do subterrâneo
um breve comentário
me desloca
pro eixo exato
de uma partida
há muito evitada

o trajeto
subitamente
longo e chato
a pseudo-esmo
tem por único fim
nunca atingir
o centro magnétco
de mim mesmo

irradiação eterna
círculos de fumaça
tudo vaga menção
ao caroço de um fruto
cuja polpa
jamais passará
de uma amarga farsa.
O espírito demasiado frágil para os brados retumbantes da noite. A alegria hostil das mãos nos cabelos, dos olhos baços, dos abraços vazios de acolhimento. Talvez seja mesmo o acolhimento, a meta do poeta que não se entrega à superfície mundana do alegre jogo de relações. O espírito demasiado frágil apagado pelos brados retumbantes da alegre noite. A alegria, sua natureza supreendentemente hostil, não comporta a dúvida. Não comporta a hesitação. Não comporta o sofrimento daquele que, alheio à roda pagã, culto moderno que reverbera uma ancestralidade remota, sofre calado da não-participação. Cambaleantemente inserido, ainda pior, que morto. Morte, total distanciamento, ou total encontro. Ideal romântico do espírito demasiado frágil para os brados retumbantes da vida solar.
digno mesmo
era fazer mais nada
deixar quieto
cruzar os braços
esticar as pernas
repleto
de dignidade
e olhos baços
não da bebida
ou do cansaço
só o silêncio exato
de quem venceu
ao convencer-se
vencido de antemão
fugir da covardia
do jogo cruel
da briga pelo pão
da disputa de macho
e exibir orgulhoso
a capacidade
de ter os pés
(e os joelhos,
e as mãos)
dignos
e confortavelmente
cravados no chão.

любпузырь

(adaptado de um poema de Celan)

aquilo

que fez-nos-nós
súbito desenlaça

um bolhonito, remoto
ronrona

nova mitologia da saudade

sou um povo que, tendo uma história religiosa cultivada na memória (bem como uma constelação de narrativas míticas), após um período de iluminismo iconoclástico (a verdadeira idade das trevas), tem de lidar com a ausência do próprio deus. um deus que, criado por nós, cristalizou-se em criador e princípio máximo de todas as relações.

sou um povo que, expulsando o próprio deus, alegrou-se na saturnália dos pretensos libertos, sendo capaz de alastrar o próprio desejo em direção ao massacre que levaria ao deserto último do tédio - não aprendeu, contudo, a lidar com a noção de culpa e de pecado, assim como não esqueceu jamais o anseio metafísico do paraíso estável.

na nova igreja do corpo que meu povo experiencia,
assumo a seita escatológica, a crença no retorno, o autoflagelo.

e a noite em que em meio ao caos, tua figura formou-se e me beijou, bem como a noite em que primeiro soprou no meu ouvido, deitada no sofá da tua casa, que me amava (e o êxtase religioso que me percorreu o corpo como ao de um profeta), assumem contornos de mito fundador.

e as histórias sobre a idade de ouro, onde numa noite de violência grudei um coração de papel brilhante na tua bochecha, bem como as de um mundo possível, autônomo, acima do vai-e-vem caótico dos infiéis, onde os cães são animais sagrados (como todos os outros) e correm amistosamente à nossa volta, continuam sendo narradas, e eu sigo crendo, murmurando orações e aguardando o retorno iluminado que arrebatará minha alma e eliminará o mal da terra.

sábado, 5 de julho de 2014

pftz

descolar
do fluxo perduro
o posterior
perjuro
deixar só
o movimento
do teu maxilar

paira acima
a via alterna
onde dancei
e li meus sonhos
nos padrões
da tua calça

no silêncio
de analogias
mal esboçadas
você me desolveu

quinta-feira, 26 de junho de 2014

fumage

Guimarães Rosa esteve na Alemanha entre 1938 e 1942. Dizem que uma noite, depois de hesitar bastante, decidiu sair pra comprar cigarro. Quando voltou, a casa em que se hospedava havia sido devastada por uma bomba.

Num filme hollywoodiano, alguém acende um cigarro, o bonitão diz "você ainda vai morrer por causa disso". Mais adiante no filme, o mesmo cara acende um cigarro num ambiente impróprio e causa uma explosão. Ha ha.

Soldados portugueses contam da guerra na Angola. Os atiradores mais astutos ficavam à espreita. De longe, quando viam o lume do inimigo acendendo um cigarro, atiravam exatamente nessa direção, atingindo-o no rosto.

Viver é muito perigoso.