terça-feira, 29 de julho de 2014

nova mitologia da saudade

sou um povo que, tendo uma história religiosa cultivada na memória (bem como uma constelação de narrativas míticas), após um período de iluminismo iconoclástico (a verdadeira idade das trevas), tem de lidar com a ausência do próprio deus. um deus que, criado por nós, cristalizou-se em criador e princípio máximo de todas as relações.

sou um povo que, expulsando o próprio deus, alegrou-se na saturnália dos pretensos libertos, sendo capaz de alastrar o próprio desejo em direção ao massacre que levaria ao deserto último do tédio - não aprendeu, contudo, a lidar com a noção de culpa e de pecado, assim como não esqueceu jamais o anseio metafísico do paraíso estável.

na nova igreja do corpo que meu povo experiencia,
assumo a seita escatológica, a crença no retorno, o autoflagelo.

e a noite em que em meio ao caos, tua figura formou-se e me beijou, bem como a noite em que primeiro soprou no meu ouvido, deitada no sofá da tua casa, que me amava (e o êxtase religioso que me percorreu o corpo como ao de um profeta), assumem contornos de mito fundador.

e as histórias sobre a idade de ouro, onde numa noite de violência grudei um coração de papel brilhante na tua bochecha, bem como as de um mundo possível, autônomo, acima do vai-e-vem caótico dos infiéis, onde os cães são animais sagrados (como todos os outros) e correm amistosamente à nossa volta, continuam sendo narradas, e eu sigo crendo, murmurando orações e aguardando o retorno iluminado que arrebatará minha alma e eliminará o mal da terra.

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